Esta é uma carta-resposta escrita para os amigos do grupo Consilium, quando questionado sobre meus reiterados questionamentos em relação as medidas adotadas pelos governos em relação ao Covid-19.
Tentarei explicar de maneira gradual pois meus pensamentos são mais relativos à abordagem do problema (execução) do que a formatação das leis em si. Apesar de ter, sim, minhas ressalvas quanto à formatação das leis no país.
Democracia e Cidadania
Uma definição da democracia é ser um regime que acredita no cidadão. Afinal, outorga-se o direito de votar para as pessoas, que é a premissa para conceder poder para outras pessoas (candidatos eleitos que formam um governo). Então imagina-se que o cidadão seja a base desse sistema, visto que o poder “emana do povo”. Certo?
Seguindo o raciocínio, se nós acreditamos nesse cidadão para escolher quem terá o poder de conduzir à todos, deve-se acreditar que esse cidadão tenha capacidade para cumprir com seus deveres (e exercer seus direitos) como tal. É a prática da cidadania.
Coerção First
Quando da necessidade de cooperação desse cidadão e confiança no mesmo, não podemos subverter o princípio da cidadania e a própria fundação da democracia assumindo uma postura de “coerção first”.
Na minha visão, a execução da força deve existir, sim, porém em último caso e não “preventivamente”.
Para mim é simplesmente ilógico “prevenir os cidadãos deles mesmos”, visto que o poder emana deles. Por isso discordei aqui, reiteradamente, de frases como “se não fizer isso, o povo não respeita”, “se você não vai sair o que é que tem ser proibido?” e tantas outras com esse mesmo tipo pensamento, pois elas pressupõem que “governo” seja algo acima dos cidadãos e que seja uma entidade que sabe, mais do que os próprios cidadãos, o que é o certo e o errado.
Na minha visão não o é e não o sabe. É uma extensão dos cidadãos, é um prestador de serviço para eles.
Empresas e Confiança
Fazendo uma conexão com o mundo real, com o nosso dia-a-dia, comentamos há algumas semanas sobre medidas que uma empresa da região toma junto aos seus colaboradores, inclusive da insatisfação de um dos membros do grupo em não poder acessar a internet na empresa ou algo nesse sentido.
Veja, o corpo diretor da empresa tem colaboradores como tantas outras empresas. “Não usar a internet para fins impróprios ou indesejados” é uma regra comum em quase todas as empresas.
A regra não está errada.
Porém a abordagem dessa empresa quanto à regra, na minha visão, está longe de ser a melhor possível. Basicamente, o que essa empresa está dizendo é: “Você não vai usar a internet, então por que não ficar sem?”. É a desconfiança acima da confiança e a coerção acima da cooperação. Eu deprecio esse tipo de relação em qualquer esfera das relações humanas.
Se considerarmos que empresas são “ditaduras”, visto que os sócios podem “excluir” qualquer membro da “comunidade”, essa posição é infinitamente mais aceitável do que um governante de estado que faça o mesmo, pelas razões levantadas nos primeiros parágrafos.
Curiosamente, apesar dessa “desculpa para coagir”, temos visto nas últimas décadas várias empresas que tem crescido justamente por ir na direção contrária à da “vara e da cenoura” (carrot and stick).
Essas empresas (entre elas exemplos conhecidos como Valve, Google, Zappos, Nubank, Stone, etc) têm oferecido para seus colaboradores coisas óbvias como dignidade, respeito, liberdade e autonomia. Nós da área de tecnologia estamos mais acostumados à esses exemplos.
Pode ser uma bolha de prosperidade? Sim, mas se já houve passos nessa direção é porque é possível ser feito.
A Imobiliária e A Lei
Vejo que muitos de vocês defendem com unhas e dentes o “cumprimento da lei e da ordem”, exigindo (ou ao menos concordando com) a imposição de obrigações e que as pessoas as cumpram.
Usarei um exemplo simples para tentar defender que, de novo na minha visão, a lei deve existir para resolver conflitos em último caso e não para ser esfregada na cara uns dos outros à todo momento.
Comentei aqui sobre empatia recentemente. Qual é o objetivo ao executar a lei? Estar certo ou resolver um problema?
Me considero um cidadão razoável e busco ter empatia pelos outros. Procuro não trazer problemas para o próximo, as vezes abrindo mão de meus próprios direitos (por escolha) para tal.
Fiquei por 1 ano e meio no meu antigo apartamento. Próximo ao sexto mês aconteceu um problema de vazamento no banheiro e, com o tempo, surgiram 4 furos que simplesmente “jorravam” água suja do chuveiro e da pia do apartamento do andar de cima.
O problema: naquele mês o prédio estava saindo do período em que era segurado pela construtora e nem o vizinho de cima, nem o proprietário do meu apartamento, nem a imobiliária e nem o condomínio se propuseram a resolver o problema, por… pasmem, 70 dias!
É degradante você ter água suja caindo no lugar em que você escova os dentes, foi um período bem ruim.
Eu filmei tudo, tinha todas as provas para, caso quisesse, executar algum dos atores responsáveis pelo que eu estava passando. Mas… qual seria o resultado dessa minha suposta ação? O que eu gostaria era que o problema fosse resolvido, simples assim. Fui negociando com quem foi necessário e, apesar da demora e da minha insatisfação, o problema foi resolvido.
Sempre fui super prestativo e cumpri com todos os requisitos impostos pela imobiliária, respondendo rapidamente, cuidando do apartamento para o proprietário e sempre pagando o aluguel em dia. Atitudes que considero uma obrigação do “papel” inquilino.
No último mês, ao sair do apartamento, a imobiliária não foi tão compreensiva, aliás, nada compreensiva. Eles foram frios: absolutamente tudo que estava no contrato e fotografado deveria permanecer como tal. Os prazos eram curtos e fixados sem negociação. Um furo que não existia antes, algo que estava desparafusado (e só precisava de um apertão) e, sim, tentaram me cobrar até por danos oriundos dos 70 dias sem manutenção no banheiro. Claro, eu que tive que provar que não era minha culpa. Sem contar o tratamento que me foi dado, quase como um “baderneiro”, com mensagens no WhatsApp ríspidas e em tom ameaçador. É mole?
O contrato e a lei estavam corretos. A imobiliária estava “cumprindo a lei”. Justo? Tenho minhas dúvidas. A lei é algo que baliza, que dá parâmetros para o comportamento ideal em sociedade, porém não acredito que ela deva ser usada como muleta para nossas relações humanas e para resolver qualquer contenda. Acho isso frio e pouco empático.
Passos de bebê
Fica o meu questionamento sobre o tipo de sociedade, o tipo de justiça e o tipo de relacionamento humano que se enxerga como ideal.
P.S.: Sei que muitos dos meus questionamentos parecem utópicos e dão margem à pergunta: “O que você sugere, então?”. Sim, sou idealista. Mas creio que, EM QUALQUER TIPO DE SITUAÇÃO – mesmo nas extremas como agora -, temos que dar passos – mesmo que sejam de bebês – para o tipo de sociedade que QUEREMOS, e não nos submeter às condições contextuais (medo, ódio ou o que for) e tomar atitudes que serão passos para trás.